A fada do lar no espaço público, é um ato político?

Ontem tivemos mais um encontro para fazermos - nós, um conjunto de mulheres - a yarn bomb para o Lavorada 2022, “colhe as flores que puderes”. Mulheres e crianças, uma delas um bebé que apreciou tanto como nós a tarde aprazível passada num espaço público, num jardim público e que terminou a tarde mamando o leite de sua mãe. Ali.

Tirei fotografias, filmei. Colhemos ao máximo a felicidade daquele momento simples, sereno e naturalmente adquirido como normal e garantido.
A tentativa de partilhar a imaterialidade daquele momento fi-la numa publicação do Instagram. Ficou bonita ao som de Coisas Bunitas da Sara Tavares.
A publicação está a ser vista por centenas de pessoas e entre elas uma mulher muçulmana. A fotografia de perfil não esconde a beleza desta mulher que o véu tenta esconder. Para sua proteção, dizem.
Fiquei a pensar, o que significará para esta mulher ver esta publicação? Terá pensado, quem são estas mulheres? Que estão a fazer? Estão na casa de alguma delas ou num jardim público? 

 

Há uns tempos li uns artigos sobre o feminismo e o ato de tricotar em público. Registei algumas frase, entre elas, estas:  
“Knitting in public is out of place…it rips open enclosure of the domestic space to public consumption.”, Jack Bratch e Heidi M. Brush
“It must question gender, class and radical hierarchies.”, Cassia Roth

Em 1999, com o seu livro-manifesto “Stitch n’ Bitch Nation”, Debbie Stoller iniciou mais um movimento feminista que pretendia afirmar o lugar da mulher, não dando a esta a possibilidade de entrar na esfera do espaço masculino, mas, precisamente, afirmando o lugar do espaço feminino e abrindo-o e trazendo-o para o espaço público. Os encontros de tricot multiplicaram-se e em cada momento da vida quotidiana era momento de tirar as agulhas do saco e tricotar, em público. Sempre que uma destas mulheres a tricotar sob o olhar alheio encontrava outra na mesma atividade, formava-se um olhar de cumplicidade, quase um elo secreto, “este espaço é nosso”.

Este manifesto partiu da reflexão do caminho que o feminismo estava a tomar. Se uma mulher era futebolista, condutora de camiões ou boxer profissional, era exaltada e reforçada no seu esforço por se afirmar. Uma afirmação que se dava pela entrada da mulher na esfera masculina. 
Mas por que não posso eu ser ter tão feminista como elas pegando nas minhas agulhas? Por que são estigmatizadas as atividades domésticas?
A resposta é simples, as fronteiras do masculino e do feminino ainda não foram derrubadas e são sólidas, difíceis de quebrar, estão no subconsciente das sociedades. O pensamento patriarcal domina e a fada do lar ainda é um lugar privado e subjugado, por isso, ainda há mulheres que querem lutar contra isto e vêem nestas atividades a menorização de se ser mulher.

Tanto como as mulheres poderem entrar no espaço masculino, o feminismo cumprir-se-á quando os homens sentirem-se livres para entrar no espaço feminino, porque estes espaços não têm que ser de uns e de outros, têm de ser espaços de todos para todos. A confirmação do espaço feminino livre e aberto ao mundo, sem os estigmas de uma sociedade patriarcal. Aí, as atividades até aqui exclusivamente femininas deixarão de ser símbolo das hierarquias de género e a mulher poderá ser igual a partir apenas do seu próprio espaço, nem masculino, nem feminino, o seu e as suas vontades.

A partir do momento em que um vídeo de um conjunto de mulheres, seguras do seu lugar na sociedade, são livres para crochetar em público, dar de mamar em público chega a sociedades hierarquicamente radicais, estamos no meio de um ato político e de afirmação da mulher tal como ela é, mulher! Melhor seria se no meio daquele grupo também um homem estivesse a fazer flores para uma yarn bomb que invoca o mais importante da vida - momentos de felicidade. Que importa tudo o resto?

 

Tricotar, crochetar em público só será um ato político se lhe dermos essa razão, se soubermos olhar para estes grupos de pessoas e sentirmos que o simples estar e fazer é a afirmação de uma convicção. Precisamos, então, de ser convictos do nosso papel na sociedade e com ele construir um lugar melhor à nossa volta, mais justo e igual para todos. E isso também se pode fazer com agulhas na mão.
O Lavorada, não sendo um encontro público de gente a fazer os seus lavores destituído de razão, quer ser um espaço sem fronteiras vãs e só se cumprirá quando acolher no mesmo espaço todos os géneros e classes e gerações em igual número. 

Contamos com todos. Dia 18 de junho de 2022 aparece e traz contigo uma amiga e um amigo, também.

Lara Mafalda

 

Leituras

Take back the feminist: History of knitting in te US.
Stitch n' Bitch Nation
Fabricating Activism: Craft-Work, Popular Culture, Gender
Feminism, Activism and Knitting: Are the fibre arts a viable mode for feminist political action?

tricotar em publico é um ato político_ lavorada
tricotar em publico é um ato político_ lavorada
tricotar é um ato político_lavorada
tricotar em publico é um ato político_ lavorada