Um dia entrei numa loja antiga da cidade do Porto onde na montra o anúncio
“máquinas de tricotar” pairava sobre uma série de peças de malha! Pouco depois esse
lugar, até aí desconhecido, transformou-se num lugar de visita regular e descobri-me,
com espanto, uma espécie de engenheira. A sério!
Tricotar…
Diz-se que “para tudo há uma ciência” e que ciência admirável é a de um saber que
com ferramentas tão simples como dois paus e duas operações de base – liga e meia –
consegue desenvolver uma imensa variedade de combinações. Segundo uma antiga
enciclopédia de lavores francesa, o exemplar mais antigo de uma peça tricotada será
uma coleção de meias coloridas descobertas no Egito por volta de 1922 e que podem
hoje ser vistas no Victoria and Albert Museum em Londres, meias essas que teriam
sido importadas da Índia por volta do século XII. A tecnologia teria chegado à Europa
via Veneza, embora alguns especialistas defendam que o mais certo é ter chegado ao
nosso continente com a invasão árabe da Península Ibérica, por volta de 711.
Autour du fil. L’encyclopédie des arts textiles, vol. 20, Editions Bonnier, 1991, Paris.
As máquinas, como sabemos, surgiram muito mais tarde, e os primórdios da Revolução Industrial foram em grande parte edificados sobre a indústria têxtil, galinha e ovo da nova era histórica que se inaugurava: o que teria nascido primeiro: as grandes fábricas têxteis ou a população em crescimento que precisava de ser vestida e agasalhada por essas ruidosas engrenagens?
O que é certo é que pelos fins do século XVIII e inícios do século XIX, Joseph Marie Charles Jacquard inventava os cartões perfurados que ainda hoje se usam nas máquinas de tricotar. E, embora Jacquard os tenha inventado para as fábricas de tecelagem de Lyon, a sua tecnologia, baseada num princípio simples de linguagem binária, perdurou até aos nossos dias…
David Monniaux - Obra do próprio, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=959006
Uma das primeiras máquinas de tricotar a conhecer uma versão doméstica foi uma máquina circular para tricotar meias. Por volta de 1878, a firma inglesa Jaeger tinha mesmo uma instrutora para formar senhoras que quisessem usar estas máquinas circulares, Miss Warren Harrison.
Machine and Hand Knitting Pattern Design, Kathleen Kinder, Batsford Ltd, 1989, Londres.
No entanto, só em 1924 é que a japonesa Masako Hagiwara inventou a primeira máquina de tricotar doméstica. O maravilhoso labirinto de engrenagens que se escondem sob o carro da máquina de tricotar é um testemunho da sua perícia:
A minha máquina de tricotar.
As máquinas podem ser maravilhosas e terríveis ao mesmo tempo! Durante a Revolução Industrial, nos alvores do movimento Arts and Crafts em Inglaterra, John Ruskin elegia o trabalho manual e artesanal como algo de edificante, por oposição ao trabalho fabril, em que a segmentação de tarefas produzia uma forma de alienação do trabalhador, que perdia assim não só a noção do todo como a noção do tempo.
Agora que a especulação tomou conta de tudo, as atividades do saber fazer confrontam-se com este dilema permanente: o de não conseguirem explicitar de uma forma contundente a sua dependência de um tempo – tempo como duração – que não admite qualquer forma de dissimulação ou subversão.
Na pequena escala de produção que é a dos artesãos, o tempo que passa assume uma materialidade que dificilmente chega a ser pressentida noutros contextos de trabalho, embora esteja inevitavelmente presente em todos eles, e isto acontece porque o artesão cobre muitas vezes toda a cadeia de produção e é em geral o único responsável pela execução de peças do princípio ao fim do processo ou o supervisor de uma pequena cadeia de produtores.
O artesanato, à semelhança de outras atividades ancestrais como a agricultura, convive de perto com o tempo: fazer um produto do princípio ao fim é ter consciência da finitude do tempo, da sua inquestionável escassez, é conviver de perto com a presença da morte e nesse sentido é uma tentativa de a aceitar, integrando-a no calendário, reintegrando-a na vida. É uma espécie de sublimação, mas em ponto pequeno. Em ponto pé de flor!
O saber fazer cristalizado nas muitas metamorfoses do que chamamos artesanato, devolve-nos a uma escala humana a que tudo na voracidade do nosso mundo nos parece subtrair. Os apelos constantes que ouvimos para adotar um estilo de vida mais “lento” encontram nas várias áreas do saber fazer, nas manualidades, nos lavores, um meio acessível de aí chegar porque nos devolvem sem dramatismos a consciência de um tempo que se escoa.
Tendo sido toda a vida uma péssima gestora de tempo e sofrendo até de alguma desconfiança em relação a propostas e sugestões para resolver o problema, foi como artesã que deixei de poder fugir à materialidade do tempo e a sua interiorização se impôs como uma necessidade vital e não apenas como um capricho de uma “estrutura” ou “entidade” que me fosse estranha, exterior a mim e às minhas necessidades…
Digamos que imperara em mim até aí uma certa noção infantil do tempo, ou seja, uma certa sensação de invencibilidade em relação ao tempo e à sua passagem. Não havia sentido de urgência que me apanhasse desprevenida! Tudo podia esperar… Tinha o tempo todo à minha frente!
Alguns anos e uma máquina de tricotar mais tarde, tudo isso mudou!
A Maria David é nossa colaboradora na escrita, no ensino de tricotar à máquina e na arte de conversar. A Oficina das Malhas é sua e tem um mini curso de máquina de tricotar agendado para 20 e 21 de maio. Clique nos links todos e fique a saber mais sobre ela e sobre o curso.